Capítulo III — Onde Baal Fala de Figueiras
Davi era, àquela altura, apenas um pastor. Tinha nos olhos a vastidão dos campos e nos pés a poeira dos caminhos. Tocava sua harpa sob o céu como quem conversa com o silêncio.
Naquela tarde, Davi estava à sombra de uma figueira, dedilhando notas em tom menor. O vento soprava com cheiro de terra úmida e ovelhas curiosas pastavam em volta, ignorantes da história que se desenrolava sob seu focinho lanoso. Fogo do céu desceu, e isto não o assustou.
— Bonita árvore. — disse uma voz.
Davi olhou em volta. Ninguém. Apenas o fogo, a luz filtrada pelas folhas, e sua própria sombra.
— Digo a figueira — continuou a voz. — Nunca vi uma crescer tão torta, mas ainda assim tão fecunda. Como certas famílias.
Davi sorriu, sem surpresa. Já ouvira aquela voz antes — nos trovões distantes, nas chuvas que vinham sem nuvens. Era uma voz antiga, como se a terra falasse por dentro.
— Está faminto, senhor? — perguntou o jovem, oferecendo um figo seco da bolsa.
— Já fui banqueteado com sacrifícios de sangue e carne gorda. Hoje, aceito figos. O que nos resta é o sabor das pequenas coisas.
Sentaram-se. Ou melhor, Davi sentou-se, e Baal pairou como fumaça quase extinta.
— Sabe o que me preocupa, Davi? — disse Baal, mordendo o ar como se mordesse o figo. — A moda.
— Moda?
— Sim. Deuses são como modas. Surgem, crescem, passam. Javé está na ribanceira colhendo os louros. Todos querem rezar a ele, dar-lhe nomes, construir templos. Eu? Quase ninguém fala mais. Só os trovões dele importam.
Davi ajeitou a túnica e respondeu com a serenidade de quem nunca viu mar, mas entende de correntezas.
— Talvez o senhor precise mudar a cor das vestes. Javé veste trovão e sangue.
— E o que você quer, Davi?
— Apenas viver, tocar minha harpa, cuidar das ovelhas.
— Mentira elegante. Todo homem quer mais.
Houve um silêncio. As folhas murmuravam, e Baal, por um momento, pareceu homem.
— Escute, pastor: não posso mais me manter. Minhas últimas imagens foram quebradas. Até meus sacerdotes agora louvam a outro. Mas encontrei em você um solo fértil. Você pode me guardar — não em altar, mas em lembrança. Um pensamento secreto. Um fio tênue que me ligue ao mundo. E a vossa descendência.
— E o que eu ganho com isso? — perguntou Davi, olhos semicerrados.
— Um trono. Não agora. Um dia. Seus filhos governarão, e eu — escondido neles — voltarei. Não como antes, em trovões, mas em parábolas. Eu me tornarei... o verbo encarnecido através de ti.
Davi pensou. Tinha pouca idade, mas já conhecia o peso das escolhas. E, talvez por instinto ou ambição, talvez por uma melodia que lhe soava familiar, disse:
— Eu posso Lhe prover, mas Javé me lidera.
— Seremos discretos, como amigos de infância. Você me esconde em seu sangue, e eu o guio pelo caminho. Um dia, renascerei — e ninguém saberá que fui eu.
E assim foi feito. Davi seguiu sua vida, subiu de pastor a rei, e em cada geração um sussurro, um sonho, uma profecia o acompanhava. Javé, alheio, absorveu Baal sem notar que a essência do outro escorria pelas veias de seu próprio eleito.